Wednesday, December 06, 2006

"A Preguiça" - Henri Michaux








A alma adora nadar. Para nadar, há que deitar-se de barriga. A alma despega-se e parte. Parte a nadar. (Se a vossa alma parte quando estais de pé, ou sentados, ou de joelhos, ou apoiados nos cotovelos, para cada posição corporal diferente a alma partira com uma locomoção e uma forma diferentes, segundo concluirei mais tarde).

Fala-se muito em voar. Não é isso. O que ela faz é nadar. E nada com as serpentes e as enguias, nunca de outro modo. Há imensa gente que tem assim uma alma que adora nadar. Chamam-lhes vulgarmente preguiçosos. Quando a alma deixa o corpo pelo ventre para nadar, produz-se uma tal libertação de sei lá o quê, é um abandono, um gozo, uma descontracção tão íntima.

A alma parte a nadar no vão das escadas, ou na rua, consoante a timidez ou a audácia do homem, porque ela conserva sempre um fio que a une a ele, e se esse fio se quebrasse (às vezes é muito fino, mas só uma força terrível o poderia romper) seria terrível para eles (para ela e para ele).

Então, quando ela está entretida a nadar ao longe, escoam-se, por esse simples fio que liga o homem à alma, volumes de uma espécie de matéria espiritual, como lama, como mercúrio, ou como gás – gozo interminável.

É por isso que o preguiçoso é incorrigível. Nunca mudará. É por isso que a preguiça é a mãe de todos os vícios. Pois acaso haverá coisa mais egoísta do que a preguiça?
Tem fundamentos que o orgulho não tem.

Mas as pessoas irritam-se com os preguiçosos.

Quando os vêm deitados, batem-lhes, mandam-lhes água fria à cabeça, eles têm de recolher a alma imediatamente. Olham-vos então com esse olhar de ódio, bem conhecido, que se vê sobretudo nas crianças.


HENRI MICHAUX


L'âme adore nager.

Pour nager on s'étend sur le ventre. L'âme se déboîte et s'en va. Elle s'en va en nageant. (Si votre äme s'en va quand vous êtes debout, ou assis, ou les genoux ployés, ou les coudes, pour chaque position corporelle différente l'âme partira dans une démarche et une forme différentes, c'est ce que j'établirai plus tard.)

On parle souvent de voler. Ce n'est pas le cas. C'est nager qu'elle fait. Et elle nage comme les serpents et les anguilles, jamais autrement.

Quantité de personnes ont ainsi une âme qui adore nager. On les appelle vulgairement des paresseux. Quand l'âme quitte le corps par le ventre pour nager, il se produit une telle libération de je ne sais quoi, c'est un abandon, une jouissance, un relâchement si intime...

L'âme s'en va nager dans la cage de l'escalier ou dans la rue suivant la timidité ou l'audace de l'homme, car toujours elle garde un fil d'elle à lui, et si ce fil se rompait (il est parfoi très ténu, mais c'est une force effroyable qu'il faudrait pour rompre le fil) ce serait terrible pour eux (pour elle et pour lui).

Quand donc elle se trouve occupée à nager au loin, par ce simple fil qui lie l'homme à l'âme s'écoulent des volumes et des volumes d'une sorte de matière spirituelle, comme de la boue, comme du mercure, ou comme un gaz --- jouissance sans fin.

C'est pourquoi le parresseux est indécrottable. Il ne changera jamais. C'est pourquoi aussi la paresse est la mère de tous les vices. Car qu'est-ce qui est plus égoïste que la paresse?

Elle a des fondements que l'orgueil n'a pas.

Tandis qu'ils sont couchés, on les frappe, on leur jette de l'eau fraîche sur la tête, ils doivent vivement ramener leur âme. Ils vous regardent alors avec ce regard de haine, que l'on connaît bien, et qui se voit surtout chez les enfants.


HENRI MICHAUX


ficha técnica:

voz: sofia saldanha
sonoplasticina: paulos

música:

triosk
toda essa água
sun o))) & boris
fridge
xiu xiu
xela
jan jelinek
midaircondo

Monday, November 20, 2006

"apreender" - Henri Michaux








Apreender
ou absolutamente nada apreender ou apreender com louca intensidade

Por falta do principal
apreender desordenadamente, exageradamente,

Atordoar-me

Tornar-me insecto para melhor apreender
patas em gancho para melhor apreender
insecto, aracnídeo, míriapode, ácaro
se for preciso, para melhor apreender.


HENRI MICHAUX


ficha técnica:

voz: paulos
sonoplasticina: paulos

música:


wolf eyes - rationed riot
sunO))) & Boris - etna


Tuesday, October 31, 2006

"a alquimia do verbo" - Arthur Rimbaud







A mim. A história de mais uma das minhas loucuras. De há muito que me gabo de possuir todas as paisagens possíveis e que acho ridículas as celebridades da pintura e da poesia moderna.

Amei pinturas idiotas, vãos de portas, bugigangas, panos de saltimbancos, estandartes, estampas baratas, literatura fora de moda, latim eclesiástico, livros eróticos sem caligrafia, romances antigos, contos de fadas, contos para crianças, velhas óperas, refrões ingénuos, ritmos simplicíssimos.

Sonhei com cruzadas, com viagens de descobrimento das quais não existiam relatos, repúblicas sem histórias, guerras de religião sufocadas, revoluções de costumes, movimentos de raças e de continentes: acreditei pois em todas as magias.

Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde - Determinei a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, procurei inventar um verbo poético acessível, custe o que custar, a todos os sentidos. Guardei a tradução.

Era acima de tudo um esboço. Escrevi os silêncios, as noites. Anotei o indizível. Firmei vertigens.


ARTHUR RIMBAUD



ALCHIMIE DU VERBE

À moi. L'histoire d'une de mes folies. Depuis longtemps je me vantais de posséder tous les paysages possibles, et trouvais dérisoires les célébrités de la peinture et de la poésie moderne.

J'aimais les peintures idiotes, dessus de portes, décors, toiles de saltimbanques, enseignes, enluminures populaires; la littérature démodée, latin d'église, livres érotiques sans orthographe, romans de nos aïeules, contes de fées, petits livres de l'enfance, opéras vieux, refrains niais, rhythmes naïfs.

Je rêvais croisades, voyages de découvertes dont on n'a pas de relations, républiques sans histoires, guerres de religion étouffées, révolutions de moeurs, déplacements de races et de continents: je croyais à tous les enchantements.

J'inventai la couleur des voyelles! - A noir, E blanc, I rouge, O bleu, U vert. - Je réglai la forme et le mouvement de chaque consonne, et, avec des rhythmes instinctifs, je me flattai d'inventer un verbe poétique accessible, un jour ou l'autre, à tous les sens. Je réservais la traduction.

Ce fut d'abord une étude. J'écrivais des silences, des nuits, je notais l'inexprimable. Je fixais des vertiges.


ficha técnica:

voz: sofia saldanha
sonoplastia: paulos

música:

tujiko noriko
arizona amp and the alternator
fennesz/o'rourke/rehberg
tara jane o'neil
toshiya tsunoda
nobody

Monday, September 04, 2006

"a colhida e a morte" - Federico Garcia Lorca







Às cinco horas da tarde.
Eram as cinco em ponto da tarde.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Uma ceira de cal já preparada
às cinco horas da tarde.
Tudo o mais era morte, apenas morte
às cinco horas da tarde.

O vento levou os algodões
às cinco horas da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco horas da tarde.
Já lutam a pomba e o leopardo
às cinco horas da tarde.
E uma coxa com um chifre desolado
às cinco horas da tarde.
Começaram os acordes de bordão
às cinco horas da tarde.
Os sinos de arsénico e o fumo
às cinco horas da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde.
E o touro sozinho coração acima!
às cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
quando a praça se cobriu de iodo
às cinco horas da tarde,
a morte pôs ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco horas em ponto da tarde.

Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam em seus ouvidos
às cinco horas da tarde.
O touro já mugia por sua fronte
às cinco horas da tarde.
Irisava-se o quarto de agonia
às cinco horas da tarde.
A gangrena já vem lá ao longe
às cinco horas da tarde.
Trompa de lírio pelas verdes virilhas
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde,
e a multidão quebrava as janelas
às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco da tarde!
Eram as cinco em todos os relógios!
Eram as cinco em sombra da tarde!


FEDERICO GARCIA LORCA


LA COGIDA Y LA MUERTE

A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde.

El viento se llevó los algodones
a las cinco de la tarde.
Y el óxido sembró cristal y níquel
a las cinco de la tarde.
Ya luchan la paloma y el leopardo
a las cinco de la tarde.
Y un muslo con un asta desolada
a las cinco de la tarde.
Comenzaron los sones del bordón
a las cinco de la tarde.
Las campanas de arsénico y el humo
a las cinco de la tarde.
En las esquinas grupos de silencio
a las cinco de la tarde.
¡Y el toro, solo corazón arriba!
a las cinco de la tarde.
Cuando el sudor de nieve fue llegando
a las cinco de la tarde,
cuando la plaza se cubrió de yodo
a las cinco de la tarde,
la muerte puso huevos en la herida
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
A las cinco en punto de la tarde.

Un ataúd con ruedas es la cama
a las cinco de la tarde.
Huesos y flautas suenan en su oído
a las cinco de la tarde.
El toro ya mugía por su frente
a las cinco de la tarde.
El cuarto se irisaba de agonía
a las cinco de la tarde.
A lo lejos ya viene la gangrena
a las cinco de la tarde.
Trompa de lirio por las verdes ingles
a las cinco de la tarde.
Las heridas quemaban como soles
a las cinco de la tarde,
y el gentío rompía las ventanas
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
¡Ay qué terribles cinco de la tarde!
¡Eran las cinco en todos los relojes!
¡Eran las cinco en sombra de la tarde!

FEDERICO GARCIA LORCA



ficha técnica

voz: pipia

sonoplasticina - paulos

Saturday, May 27, 2006

"enquanto longe divagas" - sophia de mello breyner








I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por inomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombas
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece tua alegria
- Tua jovem riqueza de arbusto -
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso


SOPHIA DE MELLO BREYNER ADRESEN




ficha técnica

voz: pipia; neil armstrong; janet cardiff
sonoplasticina - paulos
música:


Sunday, May 21, 2006

"o actor" - herberto helder








O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.


HERBERTO HÉLDER



ficha técnica
voz: pipia
sonoplasticina - paulos
música: clogs [álbum: lantern] [faixa: canon]