Wednesday, August 01, 2007

"Plano para salvar Veneza" - Jorge de Sousa Braga






Este sonopoema foi realizado para uma instalação sonora no E S P A Ç O [censura prévia], no ano 2005.

ficha técnica:

voz: sofia saldanha
sonoplasticina: sofia saldanha & paulos

música:

matmos - met life (rat relocation program)
cornelius - drop
loscil - diable marine
murcof
supersilent - 6.1




Este vídeo foi realizado por Pedro Guimarães.


PLANO PARA SALVAR VENEZA

I
Sentei-me numa esplanada nas margens do Grande
Canal e pedi uma coca cola... É terrível chegar ao fim
do século dos refrigerantes com esta infinita sensação
de sede.

O século vinte é um vasto deserto de poços de petróleo.
Perfurei o solo da minha terra mas o que me saiu foi
um jacto de poemas.

Prospecções recentemente efectuadas revelaram que sob
as areias movediças de Veneza se encontra um dos maiores
lençóis petrolíferos da Europa.



Esta noite tive um pesadelo. Nas minhas veias não era
sangue que corria era petróleo. E acabara eu de desco-
brir um poço de sangue.

Eu não estive em Awshwitz nem em Babi Yar nem em
Mai Lai. Estive sempre aqui na cama.

& a visão da primeira bomba no céu de Hiroshima fez-me
crescer momentaneamente a água na boca, assim como
a milhares de apreciadores de cogumelos.



Einstein foi uma espécie de pirilampo, uma das raras
Pessoas a possuir luz própria num século onde a maio-
ria tacteava no escuro.

24 july 1969 5 am. Neil Armstrong punha o primeiro
pé na lua. Eu dormia profundamente. E o meu sono
tornou-se nesse momento setenta quilos mais pesado.

Desde que os americanos descobriram que as estrelas
tinham pulgas que não me deixa esta comichão sideral.



O meu século não chegou a andar de gatas. Com oito
anos já se arrastava pelas minas de carvão, pouco tempo
depois combatia nas trincheiras. E as únicas lágrimas
que lhe vi chorar foram as dos gases lacrimogéneos.

Picasso morreu antes que pudesse levar a cabo o seu
sonho, um único fresco que ocupasse não a abóbada da
Capela Sixtina mas a abóbada celeste.

Fernando Pessoa morrera muitos anos antes numa clí-
nica lisboeta completamente ignorado, depois de ter
colocado um padrão com a cruz das quinas num dos
areais de areia mais fina do universo.

Talvez o meu século seja uma comédia banal, embora
filmada por homens de talento, onde algumas estrelas
se passeiam com tanto àvontade como se fosse na Via
Láctea e de que a generalidade dos participantes desco-
nhece o argumento.



II
Todos os anos o Adriático cresce alguns milímetros so-
bre Veneza, o século vinte ameaçado pelas águas.

O que é que se pode esperar de um século que foi cons-
truído sobre estacas?

A melhor maneira de conhecer o meu século é de gôndola.

Cada vez mais se apodera de mim a convicção de que
a tua salvação passa pela salvação de Veneza (se é que
não são uma e a mesma coisa).



A não ser que se tomem as devidas providências, dentro
em breve será celebrada na catedral de S. Marcos a
primeira missa submarina para cardumes de peixes
boquiabertos.

Antes disso porém o leão alado baterá as asas e regressará
de novo a Tiro.

Calma! Não há razão para entrarem em pânico. Veneza
não será destruída pelas águas mas sim pelo fogo.

Eu tenho um plano concreto para salvar Veneza. O que
me parece é que ninguém está disposto a colaborar
comigo. Estou a ser alvo de um complot e isto não é
paranóia minha. Ainda ontem os seres vermelhos e
azuis que vivem no sótão me confirmaram o facto.



Eu sou o condottiere Bartolomeo Calleoni. Hoje apeei-me
do meu cavalo e passei anonimamente pela minha Sere-
níssima República.

Quando é que a Ponte del Paradiso será de novo aberta
ao tráfego?

Aproximam-se épocas de grande religiosidade. Para
me preparar vou cultivando religiosamente a cera nos
ouvidos.

Prepara-se um século barbudo e de olhos claros.
Na altura da fuga vestia umas calças de bombasina
lilás, um blusão negro e um lenço branco ao pescoço.
Fugiu da História porque a História era demasiado
pequena para ele.



Testemunhas oculares reconheceram-no quando tomava
um vaporetto perto de Santa Maria della Salutte

Hoje descobri que era uma reincarnação de um doge.
Voltei a Veneza e ainda não desisti de recuperar o meu
palácio nas margens do grande canal a uma colónia de
ratos.

Eu sou a má consciência do meu século. Tenho a cabeça
cheia de ratos e não consigo ver-me livre deles. Nenhum
raticida (o trigo roxo inclusive) se revelou ainda eficaz.

Todas as pessoas deixam uma marca indelével no
século por onde passam, uma pegada na areia ou o
nome escrito em letras de oiro no pedestal de estátuas.
A única marca que quero deixar é uma pequena mor-
dedura atrás da orelha.

Sentei-me numa esplanada nas margens do Grande
Canal... A meus pés corria agora um extenso caudal de
coca cola.


Jorge de Sousa Braga