Friday, March 20, 2009

Tu Estás Aqui - Ruy Belo









Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui



Ruy Belo
Toda a Terra
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000

1 comment:

Joaquim Maria Castanho said...

Décimo Cálice

O presente é uma esquina
Entre o passado e o amanhã
Que o Sol, raio a raio, ilumina
Treze ao todo, conforme Arina
Dita pela voz da Lua, sua irmã.

Aquela que a reflecte por alva luz
Nas tardes escuras, presas do breu
Pois assim nos ama e alivia a cruz
Pondo cada um mais perto do céu.

Se às mãos justapostas erguidas
Ou acenando A Deus os dedos abertos
Prometer compor das suas vidas
Os hinos de coro das vozes unidas
Com a clave dos solfejos despertos.

E dispersos no globo virtual
Que alinhava todo o mundo
Numa rede de ponto-cruz universal
Do tapete do voar profundo
Com que aquela Vénus digital
Fez do ser-se apenas animal
A janela do celestial vagabundo.

Argonauta dos nomes próprios
De Cronos recíproca profundidade
Sujeita alma a reduzidos aedos heterónimos
Da liberdade acesa Reia aspergindo sinais
Brilhos, cujos fátuos olhos são a verdade
Estrela dos teus por que nos vemos iguais.



Décimo Primeiro Cálice


Andam rosas autênticas sob o estampado de outras mais e-reais
Que umas sendo arte reproduzem aquelas originais primeiras
Não se sabendo agora reconhecer a autoria sufixa dada e às quais
Sim, quais foram e são as verdadeiras, se aquelas das roseiras
Ou estas @qui alvas subtis e glamorosas mais belas que as demais?


Mas se gerar confusão esse romance assim sumariado no viés alfim
Saiba-se então, que o soletrado afélio da rima é ainda mais para mim
Onde aquela cujo nome me cresce à prontidão e entendimento atendido
Se faz poema aceso-verso e sinal, estrofe de si a quadrar puro sentido
Como se fora a Aurora ao fim do dia ou Vénus a pôr-se no Nascente
Tudo trocado, nisto somado assente fica, que viver é bem mui pouco
Pois põe-me o sentido louco, se quem deveras amo está flor ausente.


Porém se caminha indica também caminho e é bússola desse raminho
Haste de folha verde que a sustém no carinho da esperança sinuosa
A subir amparada na roseira de asilo sem o espinho da rosa verdadeira
Que destino estampado na seda, algodão ou linho é a mais real maneira
De beber a fé primeira vestida de veludo nos lábios de pétala da rosa.